quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Do Cante nosso @ 14:27
Hoje é o dia do
Cante. Da nossa pele que é de cortiça, como a dos sobreiros. Das paredes
brancas das casas caiadas. Do alcatrão dos caminhos sob o sol castigador de
Julho. Das planícies imensas que refletem as Estações. Verdes, floridas,
amarelas e secas. O verde seco e o castanho das azinheiras. A imensa solidão
dos campos, abandonados pelos latifundiários, que haviam de ser mais bonitos se
fossem das gentes. Esses campos onde somos inteiros e eternamente desta terra.
Da frescura inexplicável das casas. Do frio imperdoável de Janeiro a doer nos
ossos. Da calmaria da vida, que já que é só uma, que seja vivida aqui. Da
solidez dos sobreiros que esperam pacientes e sozinhos a próxima despela. Do
alentejano taciturno que carrega a profundidade da vida na voz. Do passado
recente de fome, que oxalá ninguém o esqueça. Do sol a sol com os pés
descalços. A fome, a miséria, a pancada. Da reforma agrária como soberba
alegria. Da liberdade. Do povo com passado de luta. Dos homens e das mulheres que
se confundem com a paisagem. Da escassa água. Do silêncio dentro do Cante. E
essa secura, dos homens e animais e árvores, que esconde os segredos desta
terra.
Não pode entender
o Alentejo quem nunca sentiu a sua história a correr-lhe nas veias, como seiva
que abre caminho com a mesma brutalidade da chegada do Verão. Uma bonita e
imensa tristeza que é a essência do que somos. E que vive eternamente no Cante
desta gente.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
@ 09:07
Quando vim viver para Inglaterra, há dois anos atrás, eu era uma pessoa diferente. Era Eu. Um Eu muito Eu e muito pouco outra coisa qualquer. Ser portuguesa significava, nessa altura, ter nascido e crescido em Portugal. E nada mais. Ser portuguesa não incluía nenhuma ideia pré-concebida acerca do que é ser português. Aliás, sempre achei que “ser português” não tinha colado a si nenhuma qualquer característica especial. Cada um é aquilo que é. Nunca gostei de rótulos e os estereótipos sempre me fizeram uma espécie de alergia. Sempre me irritou, e ainda hoje irrita, o patriotismo bacoco de pôr a bandeira nacional à janela ou cantar o hino nacional e entrar em histeria quando a selecção joga. A verdade é que nunca me senti portuguesa. Até sair de Portugal. Viver noutro país, falar outra língua todos os dias, a toda a hora, tentar fazer parte de uma cultura diferente é uma rotina a que nos vamos habituando. O que eu não estava à espera é que essa rotina me empurrasse para um lugar onde nunca me encontrei e no qual me vi tão surpreendida. Ao início foram as saudades (palavra engraçada, lá chegarei…) do país, das pessoas, da luz. Descobri que sim, é mesmo verdade, não há clima, paisagens, gastronomia, tradição como a portuguesa. Não há pessoas como as nossas. Depois veio a identidade. Afinal, eu era mesmo portuguesa. Eu, que sempre me soube e declarei independente de qualquer carimbo, que sempre repeli estereótipos. Eu, que sempre achei que era diferente, afinal, era tão portuguesa como qualquer outro português.
A primeira lição foi para mim a de que ser português é, acima de tudo, ser transparente. Pensamos, sentimos, dizemos. Sabemos ser verdadeiros e claros sem faltarmos ao respeito a ninguém. Somos directos. Nunca pensei que isto fosse tão importante, ou tão nosso, mas é. Descobri também que somos combativos e revolucionários por natureza. Muito mais do que nos achamos. Depois descobri com grande espanto que ser português é mesmo ter a saudade a correr-nos nas veias. Eu sabia que a palavra não existia em mais nenhuma língua mas nunca pensei que isso significasse que o sentimento não existisse em mais nenhuma cultura. Quando somos emigrantes, o significado de saudade transcende a outros níveis. Saudade é tristeza mas também é muita alegria e nostalgia. Saudade é a imagem do nosso país, das nossas raízes, constantemente presente no nosso espírito. A luz de Lisboa, o sabor do azeite, a cor do nosso mar, o cheiro do Alentejo são a matéria de que somos feitos. Saudade é aquilo que não podemos partilhar com absolutamente mais ninguém de outra nacionalidade, porque nunca o iriam perceber. Saudade é, afinal, o que provoca aquele sorriso cúmplice quando conhecemos outro português que vive fora. E não poucas são as vezes em que conhecemos portugueses que sabemos serem pessoas com as quais nunca nos teríamos identificado em Portugal. Mas este sentimento de que pertencemos ao mesmo sítio torna-nos mais iguais to que tudo o resto nos torna diferentes.
Eu sou a mesma. Ainda tenho todas as críticas possíveis e imaginárias (e justíssimas) a muito do que se passa em Portugal. Ainda sou eu, tenho a minha personalidade e ainda acredito nos mesmos ideais. Não tenho especial amor pela bandeira nacional e continuo a achar a letra do hino ridícula. Mas agora quando vou a Portugal Lisboa tem mais luz vista do avião. O Alentejo está mais bonito. As fachadas são mais brancas. A comida é mais saborosa. O mar é mais brilhante, mais transparente, mais azul. Os sobreiros são mais majestosos. A fruta é mais doce, mais natural. As pessoas estão mais bronzeadas e têm um ar mais saudável. A nossa língua é a mais bonita do mundo. O fado até já me soa bem. Aprendi que Portugal nos agarra quando nascemos e que nunca mais podemos ser inteiramente de outro lugar. Ser emigrante português é isto. É saber que não existe lugar melhor em nenhuma outra parte do mundo. É saber que somos, sim, aquilo tudo que dizem que somos. Ser emigrante é para toda a vida, mesmo que volte para casa já amanhã, é nunca mais nos esquecermos que pertencemos a um sítio, por muitas voltas que a vida dê.